Tenho para mim que mais e mais gente está se conscientizando do óbvio. Agora é o Jabor, que, em sua coluna semanal, considera a atuação dos militares a única forma de retomar algum contrôle ou dignidade. Como sempre briguei por isso, republico aqui em baixo sua ótima visão do mesmo problema.
A violência virou um problema de Estado-Maior - Arnaldo Jabor, O GLOBO, 17/6/02
Sempre que escrevo sobre a violência me dá uma sensação de inutilidade. Quando vejo os movimentos de solidariedade, bandeiras brancas, pombas da paz, atores nas ruas, burgueses falando em cidadania, me dá uma sensação de perda de tempo.
Nós tratamos os criminosos como se fossem “desviantes” de nossa moral, como gente que se “perdeu” da virtude e caiu no “pecado”, no “mundo do crime”. Não é nada disso. Eles são os novos empregados de uma multinacional. O único emprego que lhes foi oferecido no último século: a megaempresa da cocaína. Ela trouxe o poder sobre as comunidades que, somado à ignorância e à miséria, criou a crueldade sem limites, a bruta guerra animalesca. Os bandidos violentos são quase uma mutação da “espécie social”, fungos de um grande erro sujo do qual nós somos cúmplices.
Hoje, nós é que ficamos caretas diante deste mundo periférico que não se explica, gerando outra ética, funérea, sangrenta. A miséria armada é uma outra nação, no centro do Insolúvel.
Essa gente era anônima; estão ganhando notoriedade na mídia. São vazios objetos de uma corrente de pó; nós, pequeno-burgueses, é que víamos neles até uma vaga consciência “política” de marginais. Achamos até que eles querem calar a imprensa. Nada. Mataram por matar, chamaram o Tim de X-9 e “já era” — disseram eles. Nós é que estamos lhes fornecendo uma “ideologia”.
Mas não quero ficar deitando sociologia barata sobre a violência. Quem sou eu? Mas vejo com um mínimo de bom senso que os vilões também somos nós. Eles são a prova de nosso despreparo. Os incapazes somos nós, ainda crentes de leis inúteis, de coerções superadas, de polícias falidas.
Nós não fizemos nada quando as favelas eram pequenas. A miséria era dócil, podia ser ignorada. Agora, se não agirmos, isso vai virar uma endemia eterna. A lei não consegue nem instalar anticelulares nas cadeias e fica encenando comboios para a mídia, com cem policiais pra levar o Beira-Mar para outra cadeia.
Ninguém consegue resolver nada porque os instrumentos de defesa publica estão engarrafados numa rede de burocracias, fisiologismos, leis antigas, velhos conceitos que são facilmente superados pela eficiência “pós-moderna” dos bandidos, diretamente ligados ao ato, ao fato, à instantaneidade do mal, e sem freios éticos. Eles têm a mesma vantagem dos terroristas. Muito lero-lero racionalista ocidental, ciência, democracia e, aí, chega um arabezinho maluco com uma bomba e arrasa o shopping center.
Eles são uma empresa moderna. Nós somos o Estado ineficiente.
Eles agilizam métodos de gestão. Eles são rápidos e criativos. Nós somos lentos e burocráticos.
Eles lutam em terreno próprio. Nós, em terra estranha.
Eles não temem a morte. Nós morremos de medo.
Eles são bem armados. Nós, de “três-oitão”.
Eles ganham muita grana (Um “aviãozinho” de 15 anos ganha mais por semana que um PM por mês).
Eles estão no ataque. Nós, na defesa...
Nós nos horrorizamos com eles. Eles riem de nós.
Nós os transformamos em superstars do crime. Eles nos transformam em palhaços.
Eles são protegidos pela população dos morros, por medo ou vizinhança.
Nossas polícias são humilhadas e ofendidas por nós.
Ninguém suborna bandido. Eles compram policiais mal pagos. Um cara que ganha 700 paus por mês não tem ânimo para combater ninguém.
Eles não esquecem da gente nunca, pois somos seus fregueses. Nós esquecemos deles logo que passa uma crise de violência.
A droga e as armas vêm de fora. Eles são globais. Nós somos regionais.
Alguma vitória só poderá vir se desistirmos de defender a “normalidade” de nosso sistema, pois não há mais normalidade alguma; precisamos de uma urgente autocrítica de nossa ineficiência. O combate ao crime passa pelo combate ao nosso descaso e à nossa incompetência.
A luta contra o trafico, é obvio, começa lá longe, nas fronteiras. Por lá entram as armas e o pó. Não adianta subir e descer de morros. Temos de fechar fronteiras.
A luta contra o crime não é mais uma luta policial; não é mais a Lei contra o Pecado. Não. O crime cresceu tanto que se tornou um problema de Estado-Maior. Sim. Trata-se de uma luta política e, mais que isso, uma luta policial-militar. Acho que tem de haver, sim, uma séria articulação das Forças Armadas com as polícias. Tem de haver generais estudando estratégias e logísticas de cercos e ataques. Meses de estudo, planos secretos, dinheiro, muito dinheiro e milhares de homens com armas modernas. E tudo isso coordenado com campanhas de esclarecimento e de proteção às comunidades que eles “protegem”. “Ahh... — alguns vão gritar — o Exército não foi treinado para isso!” Pois que seja treinado. Trata-se de uma guerra. Ou não? Não combateram a guerrilha urbana, com implacável ferocidade e competência? Aposto que outros dirão: “O Exército não é para crimes comuns; é para guerras maiores...” Para quê? A invasão da Argentina? A guerra que se anuncia é subversiva no pior sentido. Não aspira a uma ordem nova. Só quer uma vingança obtusa e a manutenção da miséria como refúgio. No fundo, muitos não admitem a ação das Forcas Armadas porque desejam ocultar a derrota de um sistema legal e policial. A guerra é reconhecimento do fracasso da política. Pois que seja. Nosso fracasso tem de ser assumido. Do contrário, continuaremos atrás das grades de nossos condomínios, dizendo “Que horror!” para sempre.
Crime hediondo é que isso não seja uma prioridade nacional. A tragédia das periferias brasileiras me lembra um terremoto ignorado, para o qual ninguém enviou patrulhas de salvamento. Já houve a catástrofe e todos nós tentamos esquecê-la, trêmulos de medo, blindados, com os socialites cheirando o pó malhado de otários, perpetuando esse poder paralelo, que tende a crescer.
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