quarta-feira, julho 10, 2002

KRAMER, DORA KRAMER

Quando eu crescer quero poder escrever como Dora Kramer. Que precisão, que escolha de palavras, como seus argumentos fluem precisos, diretos, concisos, sem nunca escaparem para o acostamento, mãos firmes no volante e com faróis altos na cara do(s) oponente(s), aqueles a quem ela dirige suas palavras cortantes. Especiarias em forma de crônica política. Vejam esta, publicada no JB de hoje, que primor.

Estado entrega ouro ao bandido

Interessa, mas não é primordial saber quem está com a razão nessa história da intervenção no Espírito Santo. Se Miguel Reale ao deixar o cargo, se Fernando Henrique por recuar do apoio à posição do ministro ou se o procurador-geral da República ao aprovar a intervenção, depois reprovar e anunciar que a eleição pautou-lhe a decisão.
Antes de esmiuçar este ponto, porém, convém registrar a evidência que se sobrepõe a tudo isso: objetivamente, o crime organizado, o poder paralelo ou seja lá que nome se dê ao monstro, pelo visto imbatível, ganhou mais uma frente ao Estado completamente desorganizado, desarticulado e atarantado.
Pode-se até discutir a escalação do Espírito Santo para ser o primeiro de uma lista de locais onde urge a interferência do poder público em sua representação federal, dado que a estadual contamina-se às escâncaras pela força e pelo dinheiro do crime. Mas é indiscutível a necessidade de o combate propriamente dito começar.
E, por algum lugar, deve se dar esse início. Diante da dúvida a respeito da prioridade conferida ao Espírito Santo no pedido do Ministério da Justiça, gente do primeiro escalão da Polícia Federal explica que lá, ao contrário do Rio, por exemplo, há indícios claros do envolvimento direto de autoridades com o sistema da bandidagem.
Indícios esses colhidos durante uma CPI e que originaram um pedido formal da Ordem dos Advogados local. Até aí, poderíamos estar diante de rusgas regionais. Por isso mesmo os documentos foram enviados a Brasília para exame do Conselho dos Direitos da Pessoa Humana. Com base nessa análise, foi aprovado o pedido de intervenção.
Por unanimidade. O que significa dizer que os votantes, entre eles o procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, concordaram todos que havia sustentação legal para tal solicitação. Muito bem, encaminhados os trâmites ao Ministério Público, seu representante, Brindeiro, reafirmou a posição que havia tido ao votar no Conselho.
É de se supor que o procurador não tenha dado seu voto movido pela leviandade, nem seria lícito imaginar que o ministro da Justiça não tenha obtido do presidente incentivo para ir em frente. Se Fernando Henrique não soubesse do que se tratava ou houvesse se manifestado contra, Reale estaria demitido desde a semana passada.
Portanto, algo de muito sério aconteceu nos quatro dias que separaram a mudança radical de posições. Algum argumento pesou e nada haveria a reparar, caso Fernando Henrique e Brindeiro, tivessem tido a fidalguia de fornecer ao respeitável público explicações claras e lógicas a respeito.
Afinal, dias antes já corria no Supremo Tribunal Federal a notícia de que a aprovação da intervenção seria muito difícil.
E, decidindo a Justiça que não haveria razão para tal ato de força, o caso estaria encerrado mediante a apresentação dos motivos.
Acontece que no momento preciso do anúncio do arquivamento, o procurador-geral não apenas eximiu-se de explicitar as razões objetivas como afirmou que não seria ''adequado'' nem conveniente intervir num Estado em ''ano eleitoral''.
Note-se que Geraldo Brindeiro não se referiu a impedimentos legais em períodos de eleição, mas a inadequações e inconveniências. Conceitos, cuja margem para as mais variadas interpretações, são de dimensões amazônicas.
Viesse do adversário a acusação de que o governo estaria buscando a preservação do Estado de origem de sua candidata a vice, a fim de evitar constrangimentos a aliados no processo que, como as CPIs, tem dinâmica própria, ainda se poderia duvidar da procedência da suspeita.
Mas, quando é o próprio interlocutor do presidente que assume a sobreposição de nebulosas motivações políticas às razões da Segurança Pública, aí as coisas ficam mais sérias. Mostram, por exemplo, que tibieza e dubiedade de conduta contribuem à grande para o enfraquecimento e a contaminação do aparelho de Estado.
E o crime, resoluto que é, continua firme e forte sua trajetória em direção à irreversibilidade.