Alberto Dines é uma velha raposa felpuda do jornalismo. Sua visão dos fatos permite-lhe escrever de forma simples e inteligível tudo o que se precisa num dado momento. Deixa pouco espaço para os que o sucedem, ao opinar sobre um assunto. Sua coluna no JB de hoje é um primor que transcrevo aqui, for the record.
LER E ENTENDER
Alberto Dines - JB de 8/12/01
Peter Blake, o melhor velejador do mundo, foi assassinado às margens do Rio Amazonas, no Amapá, por ''piratas''. O eufemismo deve ter sido criado por um anônimo amigo do Brasil instalado numa agência de notícias: humilhado pelo episódio, esse brazilianista às avessas disfarçou os assassinos com adjetivo menos brutal, aceito pelos editores das primeiras páginas dos principais jornais do mundo.
Por que piratas e não bandidos? Porque pirataria tem conotação de rebeldia, lembra levantes. Piratas também são aventureiros e estes são sedutores, às vezes confundidos com rebeldes e amotinados. E neste mundo tão interpretado e hifenizado fica bem mitigar as brutalidades com palavras camufladas. Pirataria hoje é a domesticação do crime, universalização da infração - não incomoda à perua burguesa saracotear com uma Louis Vuitton falsificada nem ao executivo bem-sucedido usar no micro um Windows copiado.
Já estão presos os facínoras do Amapá - domicílio eleitoral do senador maranhense José Sarney - mas doravante aparecerão na mídia como ''piratas'' só porque o crime deu-se num barco nas margens do Amazonas e não no asfalto de Ipanema ou dos Jardins paulistanos.
Qualquer que tenha sido o autor do truque semântico, importante registrar que o homem sabe distinguir palavras. Além de saber ler, conhece as mumunhas para enganar aqueles que lêem e entendem.
Não foi o caso dos quase 5 mil adolescentes brasileiros participantes do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) que não conseguiram compreender ou explicar aquilo que lhes fora oferecido para ler.
O Brasil ficou em último lugar no teste a que se submeteram voluntariamente 32 países, alguns do primeiro mundo, outros nem tanto. Destes, ficamos abaixo da Grécia, Polônia, de Portugal, Rússia e México. Com uma média de 396 pontos numa escala que pode chegar a 626, nossos compatriotas foram classificados no nível 1, o mais elementar. São analfabetos funcionais, embora possam estar cursando a sétima e oitava séries do ensino fundamental ou o primeiro e segundo anos do nível médio.
O talibanato tupiniquim, nestes três dias depois da divulgação do vexame, já escolheu um culpado - o Ministério da Educação. É mais cômodo, mais simples. É, sobretudo, mais fácil de entender, porque a leitura de uma análise mais complexa também não seria entendida por aqueles que precisam de chavões e slogans simplistas para situar-se no mundo. Quando a prefeita de São Paulo, progressista e reformista, assessorada por um banqueiro reformista e progressista, dribla uma postura federal que obriga o dispêndio de pelo menos 30% do orçamento em educação, ficam visíveis as raízes da goleada.
O problema é de todos - dos pais que não têm o hábito de leitura porque também eles não entendem o pouco que lêem; dos professores que fazem a sua cultura por conta de apostilhas e sumários; dos jornais que decretaram há duas décadas que os leitores não precisam de textos longos - 30 linhas bastam para explicar qualquer fato ou fenômeno.
Ler e entender é um desafio que começa nas casas, nas famílias, no processo de alfabetização, nas salas de aula e nos campi das universidades. Aquela jovem mãe, devidamente diplomada, que pedia ao tio para ler as obras recomendadas pelos professores porque não os entendia jamais poderá ser a incentivadora do hábito de leitura dos próprios filhos. E estes foram os que não alcançaram o nível 1 de compreensão.
É preciso não esquecer o papel desempenhado pela televisão na humilhante classificação obtida pelo selecionado nacional na competição do Pisa. A TV universalizou-se no Brasil depois de 1964, exatamente quando em matéria de ensino passamos a buscar quantidades no lugar de qualidades. A escola pública passou a ter dois e até três turnos. Este foi o grande feito do Milagre Brasileiro: melhorar as estatísticas. A qualquer preço.
Com as escolas prejudicadas em matéria de conteúdo e a família desmotivada para complementá-lo, a TV tornou-se a grande pedagoga, matriz hegemônica de nosso processo verbal, mental e cultural. Naquele momento começou a ser armado o placar que agora tanto nos envergonhou: trocamos a leitura, com sua capacidade de estimular a imaginação, pela imagem pura e simples. Cortou-se o processo de elaborar idéias a partir de palavras pela fugaz e, em geral, estúpida representação da realidade.
Este escarcéu em torno dos triunfos de Casa dos Artistas, que logo será exacerbado com a estréia de Big Brother, é a tradução visual, em escala planetária, dos precários resultados obtidos por nossos adolescentes no campeonato da compreensão.
A idiotização da sociedade brasileira através da televisão continuará dando frutos à medida em que a concorrência entre as redes de TV prosseguir na canibalização do resto de qualidade e a mídia impressa continuar capitulando à comezinha obrigação de criar audiências capazes de entender mensagens mais elaboradas. Com cadernos teen falando apenas sobre rock e revistas voltadas apenas para escândalos & sexo estamos formando uma nação tatibitate cujos pontos altos serão as elucubrações da Xuxa ou, quando muito, as máximas filosóficas do Supla.
Não esqueçamos que a façanha de Roseana Sarney nas intenções de voto é resultado de um único show de propaganda política na TV. Não foi preciso lê-la nem entendê-la.
(...)
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Há 3 anos
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